“Não foi confronto, foi execução!”
Por Mariana Corrêa de Azevedo*
Mais uma noite de terça-feira na capital do Estado do Paraná, cidade de mitos e margens. Jardins elegantes e muros de vidro para uns; escassez, polícia e brutalidade para outros. Cada um no seu gueto. Foi em 06 de junho de 2023 que o jovem Wellington Eduardo de Moraes dos Santos (in memoriam) foi morto pelas forças policiais da Ronda Ostensiva de Natureza Especial (RONE) em um suposto “confronto” armado. Numa vila do Cajuru, numa madrugada que antecipava o inverno. Segundo o tenente responsável pelo caso, ele e mais um suspeito de roubo que se entregou e viveu – ambos localizados por meio de rastreadores de celular – estavam com pistolas e ameaçavam a lei e a ordem pública (BECKER, 2023). O desfecho foi mais um rotineiro óbito.
No dia 09 que se seguiu ao episódio trágico (o qual não sensibilizou a grande mídia), um protesto no bairro: a revolta se materializou em forma de pneus queimados bloqueando as ruas da região (FORTUNATO, 2023). E o grito por justiça ecoou triste e bravo na manifestação do dia 10 na Rua XV, no centro da cidade. Familiares organizados se reuniram na Caminhada pela vida dos inocentes, exibindo cartazes com os dizeres “Se a polícia nos agride, quem nos defende?” e “Sem justiça não há paz” (BORTOLIN, 2023). O luto e a denúncia se avolumando pelo reconhecimento das muitas vítimas de operações militares como essa.
Curitiba com sua reputação branca e europeia vive sob a égide de uma dupla moralidade. Se os seus centros são protegidos (e gentrificados), os habitantes jovens e negros das suas bordas são altamente vigiados e punidos. De acordo com o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública 2021 a cidade arquitetada, verde e sustentável esteve no ranking dos 50 municípios do país com maior número de mortes por intervenção policial: 104 homicídios em 2020 (BUENO; LIMA, 2021). 104 vidas ceifadas precocemente. 104 vidas choradas. Nas estatísticas de envergadura nacional fica evidente que são expressões contemporâneas do racismo estrutural. Em 2021, do número total de casos, 84,1% são de pessoas pretas e pardas contra 15,8% de pessoas brancas (BUENO; LIMA, 2022).
Os segredos do Batalhão não estão mais assim tão escondidos e atestam que a ditadura militar nunca acabou para aquelas e para aqueles que habitam as franjas do espaço urbano. Seria esta uma aposta verdadeiramente pacificadora? Seriam todos os pobres potencialmente violentos, especialmente os jovens? Seria o aumento da policialização e do encarceramento a solução para o problema da violência? As respostas dizem de projetos em disputa nos quais se revelam sistemas de classificação que dividem as fronteiras e as narrativas sobre o bem e o mal, sobre a própria presunção da humanidade do outro. A “gente de bem” precisa se proteger contra os perigos da bandidagem. A justiça, afinal, está vendada.
Muitas e muitos pesquisadores vêm demostrando de forma metódica, rigorosa e comprometida que no ímpeto caloroso de combater o crime estamos perpetrando uma guerra silenciosa contra a juventude pobre. Os estigmas relacionados ao ser jovem em territórios marginalizados são fundamento e resultado das éticas seletivas do sistema de justiça criminal, fortemente defendidas por uma parcela majoritária da sociedade. Se no registro formal dos direitos humanos e dos ditos constitucionais o direito à vida e à liberdade são universais, nos becos e vielas estamos longe de experimentar esta utopia; trata-se ainda de um privilégio. É lá que se assiste o suplício moderno.
Mas há de vir uma voz que galopa contra o passado, como disse o poeta da periferia Sérgio Vaz. As manifestações populares da sociedade civil – como os atos de denúncia contra as vítimas de violência policial citados – rompem as barreiras do silêncio e promovem visibilidade para um fenômeno social doído que ninguém deseja olhar. O luto das mães e familiares destes jovens, ainda que no esteio de certa resignação, é um meio de resistir e de reexistir diante de um engodo que se oficializa nas e pelas políticas de segurança pública. É preciso virar de ponta cabeça esse mecanismo perverso de controle de populações demonizadas. E é pela via do ordinário e do cultivo de novas sensibilidades societárias e jurídicas que chegaremos a um lugar diferente e menos neurótico.
Temos aí um bonito Estatuto da Juventude (BRASIL, Lei Nº 12.852/2013) que se propõe a colocar prioridades políticas para os sujeitos e sujeitas que ainda estão batalhando para se inscreverem material e simbolicamente na roda produtiva. No seu Artigo 2° o poder público promete para as novas gerações a “promoção da vida segura, da cultura da paz, da solidariedade e da não discriminação”. Mas não podemos fazê-lo sem reformar as condições profissionais dos policiais e as lógicas internas persecutórias da corporação. Sabemos que as câmeras corporais são efetivas no combate aos abusos homicidas. É preciso também compreender sob outro prisma as condições de vida e de trabalho dos habitantes da periferia, fugindo radicalmente das danosas premissas individualizantes e meritocráticas.
Quem foi Wellington Eduardo? Quem foram Alessandro, Ezequiel, Garibalde, Mateus, Selmo e tantos outros rapazes de origem similar com o mesmo fim assombrado? Não são anônimos, possuem nome próprio e precisam ser lembrados para que possamos enfim curar as feridas da memória. Temos, sobretudo, que garantir terra, teto e trabalho para todas e todos os jovens brasileiros, como sugere a premissa papal. Só assim poderemos parar de marchar e começar a caminhar em defesa da vida. Uma vez mais citando o poeta das ruas, É TUDO NOSSO!
* Mariana Corrêa de Azevedo é doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Referências
BECKER, Guilherme. Rastreador entrega paradeiro de suspeitos de roubo e abordagem termina com morte. Curitiba, PR Já RIC, 07 jun. 2023. Disponível em: <https://ric.com.br/prja/seguranca/rastreador-entrega-paradeiro-de-suspeitos-de-roubo-e-abordagem-termina-com-morte/>. Acesso em: 30 set. 2023.
BORTOLIN, Nelson. Familiares de mortos pela polícia intensificam protestos no Paraná. Londrina, Lume Rede de Jornalistas, 12 jun. 2023. Disponível em: <https://redelume.com.br/2023/06/12/mortos-pela-policia/>. Acesso em: 30 set. 2023.
BUENO, Samira; LIMA, Renato Sérgio de (coords.). Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2021.
BUENO, Samira; LIMA, Renato Sérgio de (coords.). Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2022.
FORTUNATO, Guilherme. Família de jovem morto em confronto com a PM protesta em Curitiba. Curitiba, PR Já RIC, 09 jun. 2023. Disponível em <https://ric.com.br/prja/seguranca/familia-de-jovem-morto-em-confronto-com-a-pm-protesta-em-curitiba-foi-execucao/>. Acesso em: 30 set. 2023.
VAZ, Sérgio. Cooperifa Antropofagia Periférica. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2008.