Policiais Militares: da caserna à política, por que tanta surpresa?

Policiais Militares: da caserna à política, por que tanta surpresa?

Por Elias Ariel de Souza*

 

Introdução

 

A questão que problematiza a influência dos militares na política do Brasil seja no senso comum ou seja no mundo acadêmico, inevitavelmente gera especulações, controvérsias e as vezes paixões acentuadas entre a aprovação e a repulsa. Fato é, ao menos comungo desta posição, de que isto se traduz em um falso problema, uma falsa discussão do ponto de vista de se pensar se há ou não há influências que emanam das casernas no processo político brasileiro. Os historiadores seriam suficientes para comprovarem isso com muita facilidade, do império aos dias atuais.

 

Não diferente, esta cunha militar fincada na política nacional não desapareceu simplesmente com o processo de redemocratização coroado com a constituição de 1988, mas, de forma surpreendente para os mais incautos, os últimos anos da nossa contemporaneidade parecem terem trazido uma verdadeira invasão de militares à cena política. Algo como uma onda fardada motivada por um fenômeno eleitoral recente e específico, um equívoco.

 

Os reconhecidos esforços intelectuais sobre o tema notadamente partem de análises que tendem a enxergar de uma forma agregada. Neste sentido é preciso compreender que tanto o segmento militar quanto o segmento policial se dividem de maneira distinta pelos três níveis federativos.

 

ORGANIZAÇÃO DOS QUADROS MILITARES E POLICIAIS NO BRASIL

 

Militares Policiais
Federais Estaduais Federais Estaduais Municipais
Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica) Polícias Militares e Bombeiros Militares dos estados Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Força Nacional[1] Polícias Militares dos estados, Policiais Civis dos estados Guardas Municipais[2]

Fonte: elaboração própria – 2019.

 

O segmento militar se distingue, portanto, em nível federal e estadual. Abrange nos estados federados as polícias militares que igualmente são contempladas enquanto polícias estaduais e, para além disso, elas mesmas se dividem em dois estratos internos bem marcados, oficiais enquanto dirigentes e praças enquanto executores[3].

 

Vejam, óbvio que nunca vimos tantos militares e policiais nas suas mais variadas matizes institucionais com assentos em legislativos e com discursos muito semelhantes, mas, não são uma mesma coisa e seria muito arriscado dizer que significam a mesma coisa.

 

Aqui, nossa contribuição por um pequeno olhar será tentar ajudar a entender um pouco mais a partir daqueles que detém uma dupla identidade, a policial e a militar,  no sentido de demonstrar, ainda que de forma introdutória, que por aspectos históricos, sociológicos e políticos os militares, e em específico os policiais  militares dentro das conjunturas próprias da sociedade brasileira, se constituem em um atrativo político competitivo eleitoralmente, portanto, não surpreendente que assim se coloquem.

 

Polícias militares, breve relato histórico e legal

 

Do ponto de vista da formação histórica podem-se encontrar raízes das polícias militares estaduais brasileiras a partir do período colonial. Como marco inicial do processo de formação das milícias estaduais tem-se a criação da Guarda Real de Polícia em 1809. Organização subordinada ao Ministério da Guerra e da Justiça Portuguesa, estruturada nos moldes de um exército, tratava-se de força de tempo integral com o papel de reprimir o contrabando, manter a ordem, capturar e prender escravos, desordeiros, criminosos no território brasileiro etc. (RIBEIRO, 2011, p.02).

 

Mudanças importantes ocorrem na estruturação destas instituições no período do Brasil Império. A subordinação passa, em 1830, para o Ministério da Justiça, momento também em que o exército passa a ceder oficiais para esta força e a Guerra do Paraguai absorve os contingentes policiais como unidades de infantaria. A República de 1889, com a consequente constituição de 1891, traz maior autonomia para os estados federados e estes, por sua vez, passam a organizar suas forças públicas com o mote de defesa dos governos do estaduais perante possíveis excessos da União.

 

Percebe-se que a autonomia dos estados federados possibilita a conformação de exércitos estaduais fundados na hierarquia e disciplinas militares. Notadamente, isto não passou ao largo das preocupações da União que já em 1909, através da Lei n° 1860 de 4 de janeiro, colocava as forças estaduais como auxiliares da guarda nacional e à disposição da União, corroborada com a Lei federal n° 3216, que abriu caminho para a vinculação das polícias militares ao exército, consolidando a característica de forças auxiliares.

 

É nesse momento que na força pública durante a Primeira República a face militarizada e auxiliar do exército leva as polícias militares a desempenhar papéis relevantes em conflitos armados internos. Destaca-se a participação da polícia militar baiana em Canudos; a polícia militar paulista na revolução de 1924; as polícias militares paranaense e catarinense no Contestado, bem como, o suporte da polícia militar gaúcha para a Revolução de 1930 com o fim da Primeira República.

 

Sob o controle de Getúlio Vargas e o Estado Novo, dado a participação da polícia militar de São Paulo na Revolta Constitucional de 1932, vemos começo da centralização das forças estaduais no Governo Federal onde passam a serem definidas, para além de auxiliares, como forças reservas do exército destinadas para a segurança interna e para a manutenção da ordem. Com o fim do Estado Novo e a nova constituição de 1946, a União solidifica a autonomia em legislar sobre a organização, efetivos, instrução, justiça e garantias das polícias militares, sua convocação e mobilização. Assim, as organizações militares dos estados passam a viver aquarteladas (RIBEIRO, 2011, p.04).

 

As polícias militares à luz da história recente, na ditadura militar havida entre 1964 a 1985, prestaram-se também para a sustentação do regime. Período onde o controle do exército sobre as instituições se sedimenta definitivamente inferindo desde a formação dos efetivos, logística, até os próprios padrões doutrinários e filosóficos fundados na manutenção da ordem estabelecida.

 

Mais para o presente, a redemocratização e a Constituição de 1988 trouxe o papel das polícias, inclusas as polícias militares, para o campo da segurança pública, todavia, manteve-se no texto constitucional o caráter militar destas últimas e sua destinação para também operarem como forças reservas e auxiliares do exército.

 

A socialização do policial militar

         

Aqui, especificamente, para além da socialização em caráter geral, nos interessa a socialização que ocorre a partir da profissão, de como é socializado o policial militar a partir da instituição policial militar, ou seja, como se dá a interiorização de “submundos” institucionais ou baseados em instituições (BERGER; LUCKMAN, 2004, p. 145).

 

Neste sentido, a carreira policial militar acaba por dividir a classe em dois segmentos básicos: as praças (denominação para os estratos executores) compreendido de soldados à suboficiais e que conformam a maioria dos efetivos e os oficiais (denominação aos estratos dirigentes, supervisores, planejadores, os comandantes). Tal diferenciação implica em perspectivas diferentes vez que variações no contexto institucional, dependendo de categorias e tarefas, refletem no compromisso, no treinamento, havendo sistemas diferenciados de socialização orientada para diferentes exigências (BERGER; LUCKMAN, 2004, p. 153) o que vai implicar, no limite, também nas opções políticas.

 

Berlato e Codato (2014) ao estudarem os candidatos a deputado federal oriundos das forças de segurança observaram que  além das diferenças entre estratos na própria estrutura da polícia militar, o que por si só implicaria em socialização profissional distinta no seio da instituição e que guardaria também diferenças no mundo externo, a orientação política dos candidatos necessitaria também observação acurada dado que, se surpreendeu naquele estudo o crescimento de candidaturas de policiais militares, mais surpreendente ainda foi o surgimento, a partir das eleições de 2006, de candidatos policiais por pequenos partidos de esquerda (BERLATO; CODATO, 2014, p. 9).

 

Ainda que eleitoralmente se possa eventualmente observar distinções ideológicas nas opções políticas de policiais militares, há de outro lado também algo de totalizante na socialização deles. No sentido de explorar este aspecto poderíamos invocar o auxílio de Goffman (1974) na sua descrição das chamadas Instituições Totais. Para Goffman a instituição se define como local de residência e trabalho de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período no tempo, levando uma vida fechada e formalmente administrada (GOFFMAN, 1974, p.11).

 

Por certo Goffman (1974) traduziu tal conceito tendo em mente instituições como manicômios, conventos, quartéis e prisões. Aqui, a partir do conceito de Goffman, há que se pensar se aplicável a uma instituição como a polícia militar.  Guardadas as limitações conceituais, uma instituição total se caracteriza, entre outros aspectos, por algumas premissas: habitar, trabalhar e dormir num mesmo ambiente; existência de um grupo dirigente e um grupo subordinado e fechamento ao meio externo.

 

Explorando estas premissas primeiramente quanto à incorporação da base da instituição, os soldados, o período de formação implica num regime de semi-internato, a disponibilidade é quase que total. Passam a dividir alojamentos nos centros de formação das unidades das polícias militares; efetuam diariamente juntos suas refeições; dado ao processo de escalas de serviço internas presentes e componentes desde o processo de formação, em boa parte dormem no mesmo ambiente.

 

No processo de formação dos estratos subordinados em nível de ascensão de carreira, vale dizer, cursos de formação de cabos e sargentos, o processo se repete nos centros de formação e aperfeiçoamento profissional em ritmo semelhante à de formação dos soldados.

 

Já na formação de oficiais o processo é mais incisivo. Os alunos das academias policiais militares que formam os estratos gerenciais ingressam em regime de internato, vale dizer, habitar, trabalhar, estudar e comer no mesmo ambiente todos os dias, exceto folgas eventuais nos finais de semana.

 

No que se refere à existência de dois grupos distintos, um dirigente e um subordinado, não resta dúvidas da existência desta configuração nas polícias militares. Em que pese haver distinções de graduações e responsabilidades entre os diversos degraus da hierarquia no estrato das praças, bem como, diversos degraus hierárquicos no estrato dos oficiais, em regra, aos estratos subordinados cabe à execução e aos oficiais a administração, comando e controle estando a polícia militar, portanto, em harmonia com uma instituição total onde as decisões são exclusividade da classe dirigente e, entre estas duas classes básicas, oficiais e praças, acaba por haver uma percepção do outro através de estereótipos limitados e hostis (GOFFMAN, 1974, p.19).

 

Em relação ao mundo externo, apesar das unidades da polícia militar (também nominadas como quartéis) não serem absolutamente vedadas visto a característica de serem também órgãos de atendimento público, não há de fato um livre trânsito do mundo externo nelas. Não obstante mudanças, ainda que tímidas, na relação das polícias militares com a sociedade civil, os quartéis das polícias militares guardam sim certo fechamento para a sociedade.

 

No sentido deste fechamento, de um mundo apartado, longe de qualquer digressão de sentido maniqueísta ou de conteúdo moral, as polícias militares guardam em si, como base de organização, filosofia, visão de mundo e ainda, em certa medida metodologias de ação e princípios próprios de militares, ou seja, a valorização máxima dos postulados da hierarquia e da disciplina militares. Implica, indiscutivelmente, seja pelo conteúdo histórico de força de combate, seja pela participação repressora no período de ditadura, seja ainda pela atual conotação constitucional de força auxiliar e reserva do Exército Brasileiro uma tendência nelas de olhar, agir e se relacionar a partir da lógica militar.

 

À parte das críticas passíveis de serem feitas à realidade brasileira, em verdade, as atuais polícias preventivas advêm de dois grandes ramos: o francês, cujo modelo “gendarmerie[4]” tem organização e status militares, e o inglês, idealizado por Sir Robert Peel[5], de estrutura militar, embora com estatuto civil, modelo este transplantado para os Estados Unidos da América.

 

No contexto de realidade brasileira resta pensar se o modelo que temos atende às expectativas da sociedade, se o duplo caráter (militar e policial) produzem agentes públicos e práticas públicas que se adequem a uma pretensão democrática particular. Assim, se indiscutíveis tais implicações de duplo caráter para além de raciocínios de ordem moral, indiscutível também que o civil incorporado em qualquer classe da polícia militar passa por um processo de socialização secundária e de mortificação do eu, de transformação em um novo indivíduo como diria Goffman (1974).

 

Neste processo, valores policiais e valores militares se incorporam na formação do oficial ou da praça. Torna-se um policial vinte e quatro horas por dia, está fardado, age e pensa pelo prisma do Estado, do perigo, da segurança e, eventualmente, pela lógica do inimigo. Os valores, as crenças, as ideologias presentes nas leis, regulamentos, costumes e tradições das polícias militares vão sendo assimilados de tal forma que o status social de seu “antigo mundo”, a sociedade mais ampla, cede lugar a um novo status, o de militar (SILVA, 2002, p.30).

 

Parece-nos certo que a socialização profissional dos policiais militares produz um novo elemento, um novo cidadão policial militar. Parece-nos também óbvio que tal formação implica em distensões internas nas instituições policiais militares, implica em discussões com as expectativas de setores da sociedade, implica num certo conflito de identidade institucional, mas, implica, sobretudo, numa construção totalizante da identidade policial militar.

 

A socialização retrata uma visão de mundo, em como se enxerga e de como é enxergado. Nesta esteira, começando pela sociedade em geral, ou seja, de como o policial militar é visto, dados constantes do estudo SIPS (Sistema de Indicadores de Percepção Social) divulgado pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) em 2012, fruto de pesquisa realizada em 3.775 domicílios em 212 cidades do Brasil, revelou que a maioria dos brasileiros considera o trabalho feito pela Polícia Militar lento ou ineficiente (SISP/IPEA, 2012).

 

De acordo com a pesquisa, 53,3% dos entrevistados disseram que as polícias militares não atendem de forma rápida e eficiente. Segundo o estudo, apenas na região Sul porcentagem negativa da avaliação equivale a menos da metade dos entrevistados (48,2%). Já no Norte e no Nordeste, o índice ultrapassa a média nacional: 62,6 e 57,6%, respectivamente. Na mesma pesquisa quando questionados se a Polícia Militar aborda as pessoas de forma respeitosa nas ruas a população em média de 53,6 % disse considerar a abordagem desrespeitosa (SIPS/IPEA, 2012).

 

Do outro lado, estudo realizado por Paulo Rogério Meira Menandro e Lídio de Souza do Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento/Universidade Federal do Espírito Santo em 1996, com cem policiais militares do sexo masculino, com idade predominando na faixa entre 26 e 35 anos, da classe das praças da Policia Militar do Estado do Espírito Santo revelaram dados interessantes.

 

Naquele estudo evidenciou-se que: a vocação e/ou gosto pelo militarismo foram apontadas por 48% dos PMs como motivos de seu ingresso na corporação, enquanto 26% citaram o desemprego; quanto a percepção da importância social do trabalho, quase a totalidade dos participantes (99%) indicaram que o trabalho do policial é importante para a sociedade, mas apenas 24% deles responderam que a sociedade reconhece esta importância,  evidenciaram a inequívoca percepção do fato de serem vistos de forma negativa como profissionais (MENANDRO; SOUZA, 1996, p. 136).

 

Segue a pesquisa revelando que sobre a avaliação do trabalho policial pela população apenas 25% dos participantes revelaram achar que a população vê o trabalho do policial como sendo bem feito. Grande parte dos policiais da amostra além de perceber a visão negativa da sociedade a respeito de sua atividade, ainda percebem adicionalmente que seu trabalho é visto como mal feito, ineficiente. Esta sensação de inutilidade, de ineficiência no trabalho é creditada à Justiça que “atrapalha, liberando os detidos com rapidez” (79%), e à inexistência de penalidades severas, como a pena de morte (68%) (MENANDRO; SOUZA, 1996, p. 137).

 

Como concluem os autores da pesquisa a visão negativa a respeito do profissional policial convive com um relacionamento respeitoso no trato direto de muitos cidadãos com o policial, ainda que a natureza deste respeito deva ser necessariamente explicada.

 

Portanto, a experiência de pertencer a uma instituição sobre a qual se reconhece que é vista de forma negativa, contrapõe-se uma experiência pessoal satisfatória de merecer respeito, de ser e atuar enquanto autoridade, como assim foi socializado institucionalmente e atuando em uma sociedade que faz eco aos discursos por lei e por ordem.

 

Policiais militares e o discurso de lei e ordem

 

A partir da noção que conjuga determinado momento histórico e ideias-força de mobilização é que acreditamos como a profissão policial militar se instrumentaliza politicamente. Vale dizer, em determinados setores da sociedade onde a percepção do crime se torna endêmica, uma questão de guerra, a proposta repressiva ou do combate a ser travado simbolicamente traduzido na figura de um policial militar tem ressonância.

 

No mesmo sentido, considerando uma perspectiva de senso comum, há atualmente na sociedade brasileira uma franca demanda por segurança pública. Para além de qualquer discussão do fenômeno criminológico em toda a sua extensão e complexidade, há, por certo, uma percepção gravosa da violência, assim, a possibilidade de discursos no sentido de resolução do problema fazerem-se atrativos. Mas, a percepção é correta, é coerente?

 

Poderíamos dizer que no Brasil a violência remonta desde seu período colonial notadamente no processo da escravidão. A violência prossegue no Império pela repressão às históricas revoltas regionais; a República não se fez diferente pelas fratricidas revoluções e o período da ditadura militar e entre a década de 60 a meados da década de 80, não esteve livre de processos violentos, muito ao contrário, enredado na violência estatal.

 

Particularmente a partir da década de 70, numa combinação do crime político com a criminalidade comum, surge a figura da criminalidade organizada e a violência passa a ser percebida de forma mais acintosa nos centros urbanos dado a característica dos processos criminosos estarem ligados geograficamente a regiões de maior fluxo financeiro e, não por acaso, regiões que passam a abrigar periferias pobres e receber a repercussão midiática da atividade criminosa e do crime.

 

De toda sorte, a percepção da violência difusa e urbana não é sem sentido. O Brasil faz registro, por exemplo, de taxa de homicídios desde 1980 através do Sistema de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde que aponta que o Brasil registrou em 2018 uma cifra de 51.589 assassinatos. Ainda que represente um avanço na redução de 13% em relação à 2017, o número é brutal representando uma taxa de mortes de 24,7% por 100 mil habitantes.

 

Tão grave quanto taxas de homicídio outro dado importante a ser considerado neste processo de percepção da violência é o encarceramento. O Mapa do Encarceramento produzido pela Secretaria Geral da Presidência da República aponta que entre 2005 e 2018 a população carcerária brasileira saltou de perto de 297 mil presos para perto de 687 mil, revelando que o Brasil claramente adotou uma política penal e carcerária nos últimos anos, política de Estado Penal e Carcerário, significando que está em curso o fenômeno do hiperencarceramento, mas, há que se perguntar: é uma exclusividade brasileira, há raízes externas neste fenômeno?

 

Loïc Wacquant, sociólogo francês contemporâneo, defende na obra “As Prisões da Miséria” que o incremento da penalidade e encarceramento foi instituído a partir da doutrina neoliberal da década de 1980. Tal proposta pretendeu remediar com um “Estado policial penitenciário” o encolhimento do “Estado econômico e social” que seria a própria causa da escalada generalizada da insegurança objetiva e subjetiva em todos os países, tanto do Primeiro como do Segundo Mundo (WACQUANT, 2001, p. 04).

 

Na década de 1980 é que surge, a partir de Nova York nos Estados Unidos, a teoria base do Estado Penal, a teoria “Broken Windows[6]”, que vai fundamentar a doutrina da “Tolerância Zero” espalhada pelo mundo através do ex-prefeito da cidade, Rudolph Giuliani, que passou a servir como um verdadeiro embaixador mundial pregando o mantra da solução do crime através da experiência americana.

 

Basicamente a ideia americana implicava em refrear o medo das classes médias e superiores, motivados em grande parte pela adesão de mídias populares, por meio da perseguição permanente dos pobres nos espaços públicos. Usaram para isso três meios: aumento em  dez vezes dos efetivos e dos equipamentos das brigadas, restituição das responsabilidades operacionais aos comissários de bairro com obrigação quantitativa de resultados, e um sistema de radar informatizado que permitiu a redistribuição contínua e a intervenção quase instantânea das forças da ordem, desembocando em uma aplicação inflexível da lei sobre delitos menores tais como a embriaguez, a jogatina, a mendicância, os atentados aos costumes e simples ameaças (WACQUANT, 2001, p. 16).

 

Segundo o estudo de Wacquant o processo de encarceramento gerou um impacto financeiro gigantesco ao Estado Americano na manutenção de uma população carcerária crescente em proporções formada especialmente por estratos excluídos, minorias e pobres, reintroduzindo o trabalho desqualificado em massa no seio das prisões. Assim, dado o encolhimento do Estado Social com a desregulamentação do trabalho e o trabalho imposto aos pobres fora da prisão, seria lógico impô-lo também aos pobres “de dentro”.

 

Ainda, outro método para diminuir o custo assombroso da transição do Estado Social para o Estado Penal estendeu à justiça a ideologia da mercantilização que guiou o endurecimento dos programas de assistência aos pobres, privatizou o encarceramento e culminando com o ressurgimento e prosperidade da indústria privada carcerária mantida por uma mão de obra permanente e autossustentável pelo próprio sistema (WACQUANT, 2001, p. 16).

 

Guardadas as diferenças daqui e de lá, não se pode negar que o Brasil se viu contaminado, como boa parte do mundo ocidental, pela doutrina de Estado penal e carcerário. Os dados domésticos, como vimos, revelam que seguimos no mesmo rumo, da hiperinflação carcerária. A experiência da privatização ainda é tímida no Brasil, mas, existe e mostra fôlego para crescimento, apesar disso, a experiência americana reflete aspectos de brutal semelhança com o Brasil, a dizer: o encarceramento seletivo social.

 

Neste cenário de um discurso de Estado Penal e Carcerário inegavelmente presente no Brasil, a perspectiva de endurecimento das forças de repressão em consonância com a percepção social da violência crescente potencializada pela publicitação constante da própria violência, torna o profissional policial militar atrativo como alternativa ao “estado de caos” presente no medo das classes médias e superiores, como referenciou Wacquant (2001).

 

Surgem neste cenário à necessidade de personalidades, heróis, ou quase celebridades que repercutam midiaticamente o discurso da repressão, da guerra, do combate, e aí, talvez, a ascensão de militares e policiais na política nacional poderia encontrar respostas.

 

Policiais militares e o recurso social

 

Interessante notar que no que se refere aos segmentos militares ou das polícias, independentemente do tempo em que um agente político egresso desses estratos se encontra distante da sua origem profissional, mantém quase que na totalidade, especialmente quando olhamos para cargos legislativos, suas identidades profissionais que se manifestam como identidades sociais. Assim, toda sorte de senadores, deputados e vereadores nominados como delegado fulano, capitão cicrano, soldado tal, sargento tal e assim por diante.

 

Deste modo, invocando uma leitura weberiana, ao se pensar em vocação política, de pronto surge a necessidade de enquadrar policiais militares agentes políticos dentro de tipos ideias e a consequente inquietação que se segue se a pretensão política se dá na concepção de “viver da política” ou “viver para a política”. (WEBER, 1992, p.105).

 

No contexto das profissões, ainda em Weber (1992), invocamos também a “natureza social” no sentido de que existem profissões propícias à atividade política e assim haveria que se tentar entender se a profissão policial militar se enquadra ou não neste parâmetro. Seja como for, “[…] profissões constituem uma variável estratégica no estudo de elites políticas, seja pelo que ela pode revelar sobre os recursos extra políticos mobilizáveis pelos agentes, seja pelo que ela diz sobre o mundo político em que estes atuam”. (CODATO; COSTA; MASSIMO, 2014, p. 350).

 

Como introduzimos, reforçaria o argumento da atividade policial militar como variável explicativa o fato de que a experiência profissional dos agentes de segurança pública é um “recurso social” facilmente instrumentalizável durante campanhas eleitorais uma vez que as demandas da sociedade brasileira nesse campo tendem, em geral, para o reforço das formas repressivas de controle social (BERLATO; CODATO, 2014). “Recurso social” aqui podendo também ser interpretado psicologicamente como um recurso pessoal que se constitui de fontes internas (habilidades, conhecimento, experiência e interesses) e de fontes externas (rede social, relacionamentos) que socialmente é reconhecido e por isso pode ser instrumentalizado politicamente. Psicologicamente, o termo recurso social pode ser equalizado como recurso pessoal abrindo uma boa perspectiva explicativa.

 

Em se falando de recurso social, no conceito de “capital social” surgido a partir da Teoria da Ação do sociólogo francês Pierre Bourdieu, temos: “[…] um conjunto de recursos atuais e potencias que estão vinculados a um grupo, por sua vez constituído por um conjunto de agentes que não só são dotados de propriedades comuns, mas também são unidos por relações permanentes e úteis“. (BOURDIEU, 2003 p. 67).

 

Desta forma é razoável entender que o recurso social de policiais militares, funda-se na própria categoria profissional que agrega e identifica todos seus componentes. Categoria esta que possui propriedades comuns a todos seus membros como a diferenciação social e legal, bem como, proporciona relações utilitárias como por exemplo aquelas presentes no alto espírito corporativo.

 

Certamente, por conta do conceito de capital social em Bourdieu estar na vinculação a um grupo, a associação com recurso social poderia enfraquecer-se dado que não se pode afirmar que policiais militares se candidatam e se elegem representando a categoria profissional ou sob os auspícios dela, ou seja, que o capital coletivo da classe policial militar, da classe de subordinados e comandantes, foi efetivamente individualizado na figura de um deles.

 

Há que considerar-se que se assim não o fossem, que não agregassem um capital coletivo, seguiria o sociólogo dizendo que: “[…] o volume do capital social que um agente individual possui depende então da extensão da rede de relações que ele pode efetivamente mobilizar e do volume do capital (econômico, cultural ou simbólico) que é posse exclusiva de cada um daqueles a quem está ligado“. (BOURDIEU, 2003, p. 67).

 

Assim, estaríamos no esforço de buscar as redes de relações dos policiais militares e os capitais que conseguem mobilizar e não há como negar-se em tempos de demanda por um Estado mais repressivo, que o capital simbólico de um policial militar então seja o lastro do recurso social instrumentalizável politicamente.

 

Em considerarmos a sociedade brasileira demandando por mais segurança na medida da percepção do crime como algo de grave enfermidade social endêmica, da noção de “sitiamento” do cidadão comum, afloram perspectivas apocalípticas e a urgência de uma resposta reativa materializada na visão da “necessária” e “inevitável” “guerra contra o crime”.

 

Há neste contexto então uma luta no sentido de imporem-se visões de mundo, de imporem-se verdades sociais que possam trazer a equação da violência difusa a bom termo. Nesta luta, por consequência, os agentes detêm um poder proporcional ao seu capital, ou seja, proporcional ao reconhecimento que recebem de um grupo (BOURDIEU, 2003, p. 145).

 

Nesta perspectiva há o reconhecimento do policial militar para além de promotor da segurança pública, mas, como ponta de lança na visão de um Estado mais forte, como soldado na luta travada na “guerra contra o crime”. Isto tudo é tão marcante que, de forma espantosa e absurda, autoriza hoje um saudosismo por parte de setores da sociedade pelo regime de exceção política ainda presente dolorosamente em nossa memória coletiva.

 

Conclusão

 

Neste pequeno esforço analisamos, ainda sem a profundidade que se poderia alcançar, aspectos específicos das polícias militares e de seus componentes e, poder-se-ia ir muito mais longe em diversas outras nuances e variáveis. As análises, de fato, podem e dever ser muito mais complexas do que se fechar qualquer homem com farda ou qualquer denominação policial em um único hermético ideológico.

 

Acredito que para entendermos com profundidade a questão dos militares e a política nacional é preciso antes de tudo definir os limites dos objetos, entendermos definitivamente que militares não são um todo igual e muito menos policias assim o são. É saudável para a ciência e para a democracia entender antes o que são estes diversos objetos de pesquisa que compõem a questão militar sem esquecermos suas conexões com a questão policial.

 

A partir do entendimento específico de suas naturezas verificarmos como se dão suas conexões, suas áreas de adesão e de conflitos para a partir disso traçarmos caminhos que impliquem em instituições reformadas, renovadas, reconstruídas ou novas institucionalidades com destino à cidadania e a democracia plenas, considerando, inevitavelmente, que policiais e militares ainda serão efetivos agentes políticos, mas, em que medida e de que forma sua integração política não seja perversa ao próprio sistema democrático é o que se demanda com seriedade pensar.

 

*Elias Ariel de Souza: oficial superior (tenente coronel) da reserva da polícia militar do Paraná, cientista político e pesquisador no tema militares e política.

 

Referências

 

 

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WEBER, M. Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: LTC, 1982.

 

Notas

[2] A Força Nacional é uma instituição com caráter policial a serviço e sob controle federal, formada a partir de efetivos das policiais militares e das polícias civis de todas as unidades federadas cedidos por tempo determinado.

[3] As guardas municipais não são contempladas no Art. 144 da CF/88 que trata da segurança pública, todavia, o § 8º do mesmo artigo permite aos municípios a criação de guardas municipais para proteção dos próprios públicos e, a rigor, as guardas municipais efetuam de fato o policiamento ostensivo e repressivo, além disso, com muita frequência são formadas ou capacitadas pelas polícias militares estaduais.

[4] Por ordem hierárquica decrescente: Oficiais (Coronel, Tenente Coronel, Major, Capitão, 1º Tenente e 2º Tenente); Praças (Aspirante, Subtenente, 1º Sargento, 2º Sargento, 3º Sargento, Cabo e Soldado).

[5] Gendarmeri ou Gendarmeria (homens de armas) trata-se de uma força militar encarregada da realização de funções típicas de polícia no âmbito da sociedade civil. Surge na Revolução Francesa em consequência da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão na perspectiva de que a segurança seria um direito natural e imprescindível e para preservá-lo seria necessária a existência de uma força pública. O modelo francês de polícia está presente nos países baixos, Portugal, Itália, Espanha, Chile entre outros.

[6] Robert Pell foi político e administrador público britânico do século 19. Foi duas vezes primeiro ministro, 1834 a 1835 e 1841 a 1846. Responsável por inúmeras reformas e políticas públicas nas áreas da legislação criminal, prisões, polícia, estruturas fiscal e econômica britânicas.

[7] Formulada em 1982 por James Q. Wilson (papa da criminologia conservadora) e George Kelling: adaptação do ditado popular “quem rouba um ovo, rouba um boi”, “lutando passo a passo contra os pequenos distúrbios cotidianos é que se faz recuar as grandes patologias criminais”.

 

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